sábado, 7 de agosto de 2010
Flip 2010:Debates
A vez da política
A cativante simpatia da escritora Azar Nafisi não impediu que falasse com contundência ao comentar a atitude do presidente Lula quanto à pena capital por apedrejamento, imposta pelo governo iraniano a Sakineh Ashtiani, uma mulher de 43 anos, por crime de adultério. “Não intervir já é uma forma de intervenção”, argumentou Azar no diálogo que travou com o escritor israelense A.B.Yehoshua na mesa “Promessas de um velho mundo”, realizada na noite desta sexta-feira (6).
Mesmo a mudança na postura de Lula – no sentido que Ashtiani se asile no Brasil – recebeu críticas. “Lula afirmou que a mulher condenada estaria perturbando seu amigo Mahmoud Ahmadinejad. No fundo, é o contrário. Esse sujeito é que está perturbando a mulher com a condenação. E não acho certo que democratas sejam amigos de não democratas, de gente que apedreja as pessoas até a morte”.
Para a escritora de origem iraniana, se Ashtiani vier para o Brasil, deve ter companhia – e muita. “Neste caso, que venham também os outros indivíduos condenados no Irã, os presos políticos, os 75 jornalistas detidos, as meninas jovens que mantêm as armas de destruição em massa que são seus cabelos. Diria que quase 80% da população do país terá que vir para o Brasil”, ironizou, sendo muito aplaudida pela plateia.
Quando o mediador Moacyr Scliar se referiu ao caráter político de seus livros, Azar recusou o rótulo. Segundo ela, obras como “Lendo Lolita em Teerã” – que ficou por 117 semanas na lista de best-sellers do New York Times – não são políticas, mas subversivas: “A ideia de um livro, para florescer, independe da política. Ele se torna subversivo porque revela a verdade, e diante da verdade não podemos permanecer em silêncio. A literatura pode olhar para a política, mas não deve ter a mesma textura”.
A.B. Yehoshua se solidarizou com Azar, expulsa na Universidade de Teerã por se recusar a usar o véu e hoje distante do país natal. “Lendo seus livros, notamos que ela traz o luto de não poder estar na sua terra, sentimos o drama de quem perdeu o cheiro da infância”, ressaltou. O escritor defendeu uma “restauração” da questão moral na literatura, bradando contra o relativismo que é marca da chamada pós-modernidade. Para Yehoshua, a literatura não pode “produzir milagres, mas deve recuperar o poder de dar algum sentido aos problemas de ordem moral que afligem as pessoas”.
Ele fez questão de ler em hebraico um trecho de seu romance “Fogo amigo”. “É para que os judeus não esqueçam de que têm uma língua”, justificou. E apelou à comunidade internacional, “inclusive o Brasil”, no sentido de que ofereça ajuda a palestinos e israelenses para que cheguem a uma “solução lógica” no conflito entre os dois povos.
Salman Rushdie comemora o retorno à literatura
Em nome do primeiro filho, Zafar Haroun, o escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie escreveu “Haroun e o Mar de Histórias”, publicado em 1990, um ano depois de ter sido lançada contra ele a “fatwa” do aiatolá Khomeini, então líder religioso do Irã, ordenando que os muçulmanos o matassem. Tudo por causa de “Versos Satânicos”, publicado em 1989, em cujo capítulo 6 o personagem Gibreel Farishta, em meio a alucinações, insinua que Maomé teria sido um devasso. Mesmo que o livro seja um emaranhado de sonhos dentro de sonhos, alguém no universo do fundamentalismo islâmico do Irã entendeu que se tratava de uma blasfêmia.
Difícil acreditar, como observou o jornalista Silio Boccanera, que entrevistou Rushdie para a Mesa 10 da Flip nesta sexta-feira (6), que Khomeini tivesse encontrado tempo, entre suas leituras de textos sagrados, para as 600 páginas dos “Versos Satânicos”. O fato é que a condenação valeu ao autor tanto a celebridade instantânea como uma década inteira de vida reclusa. “Haroun e o Mar de Histórias” nasceu a pedido do filho mais velho: enquanto ele ainda escrevia a obra que acabaria mudando sua vida, Zafar pediu que escrevesse uma história para ele.
O primogênito tinha dezoito anos quando nasceu Luka, que também pediu um livro para si. “Luka e o Fogo da Vida” teve lançamento mundial, nesta sexta-feira, durante a Festa Literária Internacional de Paraty. Trata-se de uma continuação da saga de Haroun, na qual o menino segue o irmão pelo mundo da imaginação, em busca de uma cura para o pai, que, enfeitiçado, perdeu a capacidade de contar histórias. Sir Salman Rushdie, condecorado pela rainha da Inglaterra, como destacou Boccanera, tem agora uma vida menos reclusa, 21 anos depois da “fatwa”, e circulou com bastante liberdade pela velha cidade.
Parte da viagem do herói acontece sobre um tapete voador. Rushdie conta que sempre desejara colocar um desses objetos míticos num de seus livros, mas descobriu que o colombiano Gabriel Garcia Márquez o havia precedido, no premiado “Cem Anos de Solidão”. O enredo foi especialmente construído para Luka. O personagem central é canhoto como ele, tem a mesma idade – doze anos – e viaja na companhia de um cachorro e um urso que podem voar. O filho do escritor tem um cachorro labrador cujo nome é Urso.
Sobre o tempo que passou sob ameaça de assassinato, quando teria sido obrigado a viver praticamente invisível, Salman Rushdie comentou que não lhe produziu mudanças na visão de mundo nem proporcionou mais ou menos inspiração. “Nem diria uma coisa dessas, porque poderia estimular alguma pessoa a tentar a mesma coisa. Na verdade, eu não estava invisível, pelo contrário – estava sempre cercado de homens armados, o que equivalia a ficarem me apontando e dizendo: ele está bem aqui”, brincou.
O senso de humor com que Rushdie se refere à ameaça dos aiatolás chega a surpreender e provoca risos na platéia. “Era um problema que eu tinha que superar. Eu estava no fogo cruzado de uma luta e havia muitas das coisas que eu detesto, como a violência, a intolerância e o ódio aos livros. Mas havia também a coisa boa que era saber que eu estava do lado certo”, acrescentou.
Para um escritor satírico como ele, disse Rushdie, era importante manter a consciência dos valores que estava defendendo. O período em que permaneceu sob a “fatwa” vai finalmente virar livro. “Estou escrevendo agora”, revelou. “Aconteceu aquilo e se eu fosse inventar, diriam que era ficção de má qualidade”, observou, dizendo que escreve muito devagar: “Comecei há quatro ou cinco meses e escrevi umas 60 ou 70 páginas”. Questionado se mudou sua opinião sobre os fundamentalistas, ele disse que não. “Antes de haver escrito os ‘Versos Satânicos’, antes de ser afetado pessoalmente, eu já tinha pensado no fanatismo religioso”, revelou.
Vivendo agora em Nova York, Salman Rushdie se diz surpreendido com a religiosidade dos americanos. “Os americanos ficam chocados se você diz que não tem religião”, estranha. Ele observa que não gosta de religiosos porque julgam que têm respostas para tudo. “Eu prefiro as pessoas que fazem perguntas”, acrescentou. O autor se declara conhecedor de Machado de Assis, de quem prefaciou uma edição em cachemir, e influenciado por outros escritores latino-americanos, como o argentino Jorge Luis Borges e Garcia Márquez.
Rushdie promete para daqui a uns anos o livro sobre o período em que foi um condenado à morte. Antes de “Versos Satânicos”, ele já era um escritor premiado. Ganhou o Booker Prize em 1981 pelo romance “Os Filhos da Meia-Noite”. De volta a uma vida quase normal para uma celebridade, ele comemora o fato de ter voltado a ser apenas um escritor.
Em defesa de Deus e contra Dawkins
Classificado pelo Sunday Times como “marxista, religioso, velho e punk”, o crítico cultural Terry Eagleton mostrou na manhã de hoje (7) que o jornal inglês poderia ter acrescentado mais um adjetivo à lista: mordaz. Estrela da mesa “Andar com fé”, mediada pelo jornalista Silio Boccanera, Eagleton não poupou farpas na direção de seus mais notórios contendores. O principal deles, Richard Dawkins, que esteve na Flip 2009.
“Dawkins é antiquado, parece um racionalista do século 19 em sua crença de que Deus é um mal da evolução. Repete que não acredita em Deus, mas não tem a menor ideia de o que Deus significa”, afirmou. Eagleton foi irônico ao apontar um suposto paradoxo no discurso do cientista: “Ele acredita que, se não fosse a religião, poderíamos caminhar para frente rumo a um novo Iluminismo. Não consigo pensar em algo mais supersticioso do que isso”.
Nas considerações sobre Deus e religiosidade, sobrou também para outro ateísta célebre: o jornalista Christopher Hitchens, que também já veio à Paraty (Flip 2006). “Ele acha simplesmente que a religião é uma coisa nojenta. Mas é melhor argumentar com Hitchens do que com o camareiro da rainha, que não vai perguntar se você quer ser lavado em sangue de ovelha, apenas se você quer um Brandy”, disse Eagleton, com senso de humor puramente britânico.
O crítico centrou fogo ainda no que chamou de “islãfobia”, salientando que não se pode confundir uma minoria adepta do Islamismo radical – “que mata pessoas em nome de Alá” - com milhares de muçulmanos. E propôs que o Ocidente faça um ‘mea culpa’: “Há uma variedade texana do Islamismo, e várias formas de Islamismo evangélico, no mundo e aqui mesmo, no Brasil. Mas os liberais sempre acham que os bárbaros são os outros, como se a tradição ocidental fosse isenta de barbarismos”.
Ao abordar, instado por Boccanera, a relação entre marxismo e fé, o crítico lamentou que a famosa frase do mentor da doutrina comunista seja em geral compreendida fora de seu contexto: “Antes de dizer que é o ópio do povo, Marx afirmou que a religião é o coração de um mundo sem coração”. Apesar de marxista, Eagleton fez a ressalva de que não subscreve tudo o que o filósofo escreveu. “Não conheço freudiano que concorde com todas as teorias de Freud, nem darwiniano que acredite em tudo o que Darwin defendeu. A não ser Dawkins, é claro”, comentou ele, na alfinetada final.
Aldeias que são o mundo
William Kennedy e Colum McCann compuseram a Mesa 12, mediada pelo historiador e crítico literário Angel Gurria-Quintana, com o tema “Albany, Nova York e Outras Aldeias”. A conversa deveria rolar em torno da hipótese de que histórias muito localizadas poderiam ter, em seu conjunto, tantas convergências que o local termine representando o universal. Mas os personagens fortes dos dois escritores invadiram a Tenda dos Autores. Faltou apenas o bafo de uísque barato para que a plateia sentisse ali a presença de Francis Phelan, o vagabundo de “Ironweed”, clássico publicado por Kennedy em 1983.
O primeiro personagem, o equilibrista francês Philippe Petit, que em 1974 atravessou o espaço entre as torres gêmeas do extinto World Trade Center de Nova York balançando sobre um cabo de aço, deixou em suspenso o público, na leitura do episódio inicial do livro que McCAnn intitulou “Deixe o Grande Mundo Girar”. A imagem do homem balançando entre dois edifícios que anos depois foram demolidos de maneira tão trágica é impactante.A leitura de um trecho de “Ironweed”, no qual o vagabundo Phelan aparece em toda sua patética decadência, introduz a platéia ao poder do escritor de fazer uma tomografia da alma humana.
“Deixe o Mundo Girar” obra publicada em 2009, valeu ao autor irlandês, nascido em Dublin em 1965, o National Book Award e uma crítica na revista Esquire como “o primeiro grande romance sobre o 11 de setembro”. Publicado em 1982, “Ironweed”, segundo o próprio Kennedy, o tirou de uma vida de pobreza, quase à beira da falência, e o colocou quase instantaneamente entre os clássicos da literatura contemporânea. A conversa girou inicialmente em torno do tema central, mas os personagens não demoraram a assumir o controle.
Os sete romances de William Kennedy que formam o chamado Ciclo Albany, com especial destaque para “Ironweed”, publicado no Brasil com o título “Vernônia”, introduziram a questão da localidade versus universalidade na obra literária. O livro mais recente de McCann parte da façanha realizada pelo equilibrista francês e se move para a narração de histórias fictícias de passantes anônimos que levantaram seus olhos para o topo do WTC naquela manhã de 1974. Daí, o romance ingressa nas cicatrizes da alma de Nova York.
Kennedy fez um ensaio sobre Phelan, num romance anterior que não chegou a ser publicado. Era a história de um vagabundo que retorna à casa para o velório da mãe. “Eu o conheci como se existisse de verdade”, diz o autor. Sua atividade de jornalista investigativo, explicou, o levou a conhecer pessoas reais cujas características acabaram por compor um personagem quase concreto. Collum McCann também trabalhou como jornalista, era um jovem muito protegido, criado num condomínio fechado de Dublin, e foi o trabalho como repórter que o levou a conhecer o mundo dos deserdados. “Passei um ano e meio convivendo com os sem-teto, desempregados e pobres da cidade”, conta, e teve que explicar à mãe como havia chegado a conhecer uma prostituta de 38 anos que já era avó.
Kennedy confessa que antes de “Ironweed” não conhecia realmente Albany, nem tinha ideia do bairro onde havia vivido. De volta de uma viagem a Porto Rico, foi convidado a fazer uma reportagem sobre cada um dos bairros. “Foi um presente dos céus”, conta, porque descobriu que Albany foi a primeira cidade realmente fundada nos Estados Unidos, palco de guerras e outros episódios históricos, e uma grande galeria de personagens fascinantes.
Francis Phelan se tornou tão intenso, segundo Collum McCann, que, imagina, “se eu for a Albany vou acabar encontrando-o, assim como a gente encontra o Leopold Bloom de Joyce em Dublin. O personagem cria vida”, acrescentou, contando que quando escreveu “Dancer”, um romance sobre Rudolf Nureiev, muitos admiradores do bailarino russo lhe disseram que preferiam o personagem da ficção do que o real, retratado em biografias.
Desafiados a lembrar o ano de 1982, os dois autores contaram que foi um ano essencial em suas vidas. McCann disse que foi o ano de sua primeira viagem a Nova York, aos 17 anos, onde ficou por seis meses. A complexidade da grande cidade e a prática do jornalismo abriram sua percepção para a carreia literária, que viria anos depois. A cidade entrou, então, em sua vida. Ele voltaria depois para retratá-la no romance que lhe deu o reconhecimento do público e da crítica.
Para William Kennedy, 82 foi o ano da mudança. Ele conta que naquele ano havia publicado “Ironweed” mas ainda era um jornalista pobre. “Eu era quase falido, quase um Francis Phelan”, conta. Foi jantar num restaurante chinês e, ao abrir o “biscoito da sorte”, leu o prognóstico: aquele era seu dia de sorte. Em seguida, foi informado de que “Ironweed” havia ganho o prêmio Pulitzer. Na sequência, foi convidado para lecionar ficção na universidade Cornell, com o dobro do salário, e chamado por Francis Ford Coppola para escrever o roteiro de “The Cotton Club”. O outro Francis, Phelan, foi seu passaporte para o sucesso.
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