terça-feira, 10 de agosto de 2010

A Morte de Bunny Munro:Primeiro Capítulo


Lançamento de agosto da editora Record, "A Morte de Bunny Munro", primeiro livro do músico australiano Nick Cave publicado no Brasil, deve agradar não somente aos fãs do roqueiro.

A história de um anti-herói, mulherengo e mau-caráter que, após o suicídio da mulher, parte com o filho para uma pequena odisseia rumo ao Sul da Inglaterra e descobre que está com os dias contados, tem recebido elogios da crítica ao redor do globo.

No livro, Bunny Munro tem um apetite sexual incontrolável. O personagem é um vendedor de cremes para as mãos. Enquanto seu filho aguarda no carro, ele bate de porta em porta para vender seus produtos e tentar seduzir donas de casa solitárias.

Nick Cave também escreveu "And the Ass Saw the Angel", inédito no país. O livro narra a história de um menino surdo, que passa por abusos familiares e sofre preconceito na cidade onde vive.

Leia o primeiro capítulo de "A Morte de Bunny Munro".

*
1 "Eu estou condenado", pensa Bunny Munro em um súbito momento de autoconsciência reservado àqueles que estão prestes a morrer. Ele sente que em algum momento da vida cometeu um erro grave, mas, essa percepção se esvai em um terrível instante, desaparecendo - e deixando-o em um quarto no hotel Grenville, somente com as roupas de baixo, sem nada além de si mesmo e seus desejos. Ele fecha os olhos e imagina uma vagina aleatória, então se senta na beirada da cama e, em câmera lenta, recosta na cabeceira acolchoada. Prende o celular sob o queixo e parte com os dentes o lacre de uma minigarrafa de conhaque. Manda a bebida goela abaixo, arremessa a garrafa pelo quarto, e então treme e engasga e diz ao telefone:

- Não se preocupe, querida, vai ficar tudo bem.

- Estou com medo, Bunny - diz Libby, sua esposa.

- Medo de quê? Não tem nada a temer.

- De tudo, estou com medo de tudo - diz ela.

No entanto, Bunny percebe que houve uma mudança na voz de sua mulher; os violoncelos suaves deram lugar a um violino agudo e estridente, tocado por um macaco em fuga ou algo do gênero. Ele registra o fato, mas ainda sem entender o que exatamente isso significa.

- Não fala assim. Você sabe que não adianta nada - diz Bunny, e, como se fosse um ato erótico, dá uma longa tragada em um Lambert e Butler. É então que ele se dá conta - o babuíno tocando o violino, a voz dela em uma inconsolável espiral descendente -, diz:

- Porra! - Solta fumaça pelas narinas como se fossem dois furiosos dentes de elefante. - Você parou de tomar o Tegretol? Libby, fala que está tomando o seu Tegretol!

Silêncio do outro lado da linha, e então surge um soluço entrecortado, distante.

- Seu pai ligou de novo. Não sei o que dizer a ele. Não sei o que ele quer. Ele grita comigo. Fica furioso - diz ela.

- Pelo amor de Deus, Libby, você sabe o que o médico disse. Se não tomar o seu Tegretol, você entra em depressão. E você sabe muito bem que é perigoso para você ficar deprimida. Porra, quantas vezes a gente vai ter que passar por isso?

O soluço se duplica uma vez, depois outra, até se tornar um choro suave e angustiado que faz Bunny se lembrar da primeira noite dos dois - Libby deitada em seus braços, entregue a uma crise de choro inexplicável, em um quarto de hotel vagabundo de Eastbourne. Lembra-se dela erguendo os olhos para ele e dizendo: "Desculpa, às vezes eu fico meio emotiva", ou algo do gênero, e coloca a base da mão sobre a virilha e aperta, enviando uma onda pulsante de prazer para sua coluna lombar.

- Toma a porra do Tegretol, só isso - diz ele, mais calmo.

- Estou com medo, Bun. Tem um cara atacando mulheres por aí.

- Que cara?

- Ele pinta a cara de vermelho e usa uns chifres de diabo de plástico.

- O quê?

- Lá pro norte. Está passando na TV.

Bunny apanha o controle remoto de cima do criado-mudo e, com uma série de golpes e contragolpes, vira a televisão que está em cima do frigobar. Deixando-a no mudo, ele troca de canal até encontrar uma gravação feita pelas câmeras de segurança de um shopping em Newcastle. Um homem, sem camisa e usando calças de ginástica, caminha em ziguezague por uma multidão de clientes aterrorizados. Sua boca está aberta em um grito mudo. Ele parece estar usando chifres de diabo e brandindo o que seria um cassetete grande e preto.

Bunny xinga baixinho, e neste instante toda a energia, sexual ou não, o abandona. Ele atira o controle na TV, que se apaga com um barulho de estática, e deixa a cabeça cair para trás. Bunny se concentra em uma mancha de infiltração no teto no formato de um pequeno sino ou de um seio de mulher.

Em algum lugar nos confins da sua consciência, ele percebe um gorjeio frenético, um zumbido de protestos furiosos, sons eletrônicos e estrondos, porém, em vez de reconhecer tais sons, ele ouve sua mulher dizer:

- Bunny, você está na linha?

- Libby, onde você está?

- Na cama.

Bunny consulta o relógio, simula estar tocando um trombone, mas não consegue focalizar.

- Pelo amor de Deus. Onde está Bunny Junior?

- No quarto dele, imagino.

- Olha, Libby, se o meu pai ligar novamente...

- Ele anda com um tridente - diz a esposa.

- O quê?

- Um forcado.

- O quê? Quem?

- O cara, lá no norte.

Então Bunny nota que aquele piado estridente está vindo lá de fora. Ele agora pode ouvi-lo acima do zumbido do ar-condicionado, tão apocalíptico que quase atiça sua curiosidade. Quase.

A mancha de infiltração no teto está crescendo, mudando de formato - um seio maior, uma nádega, um sensual joelho feminino -, e uma gota se forma nela, alonga-se e treme; então se solta do teto, desce em queda livre e explode no peito de Bunny. Ele passa a mão sobre a gota como se estivesse sonhando e diz:

- Libby, baby, onde a gente mora?

- Em Brighton.

- E onde fica Brighton? - diz ele, correndo um dedo pela fileira de garrafas de bebida em miniatura dispostas sobre o criado-mudo e escolhendo uma de Smirnoff.

- Bem no sul.

- O que é o mais longe de "lá no norte" que você pode chegar sem cair no maldito mar. Agora, meu bem, desliga a TV, toma o seu Tegretol, toma um remédio pra dormir... quer saber, toma dois remédios pra dormir... e amanhã eu estou de volta. Cedo.

- O píer está pegando fogo - diz Libby.

- O quê?

- O West Pier, está pegando fogo. Dá pra sentir o cheiro de fumaça daqui.

- O West Pier?

Bunny manda a vodca goela abaixo, esvaziando a garrafinha, depois acende outro cigarro e se levanta da cama. O quarto oscila à medida que ele é atingido pela percepção de que está muito bêbado. Com os braços estendidos para o lado e na ponta dos pés, ele atravessa titubeante o quarto até a janela. Cambaleia, tropeça e se balança nas cortinas desbotadas de chita até recuperar o equilíbrio e se endireitar. Quando as abre, com um gesto extravagante, a luz do dia vulcanizada e o grito dos pássaros esmagam o quarto. As pupilas de Bunny se contraem dolorosamente e ele olha pela janela com uma careta, fitando diretamente a luz. Vê uma nuvem negra de estorninhos, gorjeando como loucos por sobre o vulto flamejante do West Pier, que jaz desamparado no mar diante do hotel, soltando fumaça. Primeiro ele se pergunta por que não viu aquilo antes e, depois, há quanto tempo está neste quarto. Em seguida, lembra-se de sua mulher e a ouve dizer:

- Bunny, você está na linha?

- Estou - diz ele, paralisado diante da visão do píer flamejante e dos mil pássaros gritando.

- Os estorninhos enlouqueceram. É uma coisa terrível. Os filhotinhos deles queimando nos ninhos. É demais pra mim, Bun - diz Libby, o violino agudo soando mais forte.

Bunny volta para a cama e ouve sua mulher chorando ao telefone. Dez anos, pensa, dez anos e essas lágrimas ainda mexem com ele; aqueles olhos azuis-turquesas, aquela bocetinha gostosa, minha nossa, e aquele jeito inexplicável de suspirar. Então, Bunny recosta na cabeceira e bate, como um macaco, na genitália, dizendo:

- Vou estar de volta amanhã, querida, cedo.

- Você me ama, Bun? - pergunta Libby.

- Você sabe que sim.

- Jura pela sua vida?

- Por Jesus Cristo e por todos os santos. Por tudo que você quiser, baby.

- Você não pode voltar pra casa hoje à noite?

- Se pudesse, eu voltaria - diz Bunny, tateando em volta da cama em busca dos cigarros -, mas estou a quilômetros daí.

- Ah, Bunny... seu mentiroso de merda...

A linha fica muda; Bunny diz:

- Libby? Lib?

Ele olha confuso para o telefone, como se tivesse acabado de descobrir que está com ele nas mãos, então o fecha assim que outra gota d'água explode no seu peito. Faz um pequeno "O" com a boca e enfia um cigarro nela. Acende-o com seu Zippo e dá uma longa tragada, soltando um jato deliberado de fumaça cinza em seguida.

- Você está com um problema e tanto, benzinho.

Com grande esforço, Bunny vira a cabeça e olha para a prostituta parada no batente da porta do banheiro. Suas calcinhas cor-de-rosa fluorescentes pulsam contra sua pele cor de chocolate. Ela coça as trancinhas do seu penteado afro e uma fatia de carne laranja espia de trás do lábio inferior amolecido pela droga. Bunny acha que seus mamilos parecem o acionador daquelas minas que ficavam flutuando no mar para destruir navios durante a guerra ou coisa parecida, e quase diz isso para ela, mas esquece e dá outra tragada no cigarro e diz:

- Era minha mulher. Ela sofre de depressão.

- Não é a única, meu bem - diz ela enquanto atravessa cambaleando o carpete Axminster desbotado, a ponta chocante da sua língua projetando-se rosada por entre os lábios. Ela se ajoelha e coloca o pau de Bunny na boca.

- Não, é uma doença mesmo. Ela toma remédio.

- Então somos duas, benzinho - diz a garota, através da barriga dele.

Bunny parece refletir sobre a resposta enquanto mexe o quadril. A mão flácida e negra da prostituta descansa na sua barriga, e, ao olhar para baixo, ele nota que cada unha tem um desenho detalhado de um pôr do sol tropical.

- Às vezes ela fica muito mal - diz ele.

- Não dá pra ser diferente, baby - diz ela, porém Bunny mal consegue ouvir, pois sua voz sai na forma de um grasnido abafado e incompreensível. A mão se contorce e depois salta em cima da sua barriga.

- Ei? O quê? - diz ele, sugando ar por entre os dentes. Então, arqueja de repente e lá estava aquele pensamento fatalista de novo, soprado de lá de dentro do seu
coração: - Eu estou condenado. - Ele dobra um braço
sobre os olhos e se encurva um pouco.

- Você está bem, querido? - pergunta a prostituta.

- Acho que tem uma banheira transbordando no andar de cima - diz Bunny.

- Fica quietinho, baby.

A garota ergue a cabeça e olha de relance para Bunny, que tenta encontrar o centro dos seus olhos negros, o indício de aborrecimento nas suas pupilas, mas, seu olhar se desconcentra e embaça. Ele coloca a mão na cabeça da prostituta, sentindo a umidade na sua nuca.

- Fica quietinho, baby - repete ela.

- Me chama de Bunny - diz ele, vendo uma segunda gota tremer no teto.

- Posso te chamar do que você quiser, doçura.

Bunny fecha os olhos e aperta as tranças ásperas do cabelo dela. Sente a explosão suave de água no seu peito, como um soluço.

- Não, me chama de Bunny - sussurra ele.

*
"A Morte de Bunny Munro"
Autor: Nick Cave
Editora: Record
Páginas: 352
Quanto: R$ 49,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

Nenhum comentário:

Postar um comentário